Artigo: Escolha de conselheiro de Tribunais de Contas: uma questão de moral (e Cívica)

Campo frtil para uma reflexo moral a poltica notadamente a brasileira, onde os vetores adotados nem sempre convergem para o interesse comum. Numa sociedade democrtica, cidados e governantes se veem diante de situaes que lhes oferecem adotar mltiplas alternativas, mas nem sempre dispem de clareza moral para fazer a escolha mais correta, capaz de proporcionar a concretizao de uma sociedade justa. Somos todos signatrios de um contrato social (Rosseau, Do Contrato Social), por meio do qual poderosos e fracos e ricos e pobres submetem-se s mesmas leis, mesma constituio, cujo povo soberano devendo seus representantes eleitos, nada mais, nada menos, que agir segundo a sua vontade.
Fato que tem colocado prova todas as teorias morais e republicanas o processo de escolha de conselheiros dos Tribunais de Contas. A Constituio Federal estabelece que esses magistrados sero indicados, proporcionalmente, pelos Poderes Executivo e Legislativo, dentre brasileiros que possuam idoneidade moral e reputao ilibada, alm de notrios conhecimentos jurdicos, ou contbeis, ou econmicos e financeiros ou de administrao pblica.
Historicamente, tais requisitos vm sendo sistematicamente vilipendiados. Num odioso fisiologismo e corporativismo, Executivo e Legislativo tm preenchido esses cargos por apadrinhados polticos, geralmente ocupantes de cargos de secretariado, e por deputados apesar de a muitos deles faltar o indispensvel conhecimento tcnico ou atributos de ordem moral.
Estudo da Associao Nacional do Ministrio Pblico de Contas realizado em 2011 indicou que 48 dos 240 ministros e conselheiros de Tribunais de Contas j foram ou estavam sendo processados por envolvimento em atos de corrupo, como nepotismo, desvio de recursos pblicos, trfico de influncia, fraude em licitaes e superfaturamento.
No Esprito Santo, o cenrio no diferente. Em 2011, o conselheiro Umberto Messias de Souza, que ento presidia o Tribunal de Contas do Estado (TCEES), foi condenado a dois anos e seis meses de priso pelo Superior Tribunal de Justia (STJ) pelo crime de receptao qualificada. Ele recebeu dinheiro de operaes fraudulentas de aquisio de crditos tributrios de ICMS entre a Samarco Minerao S/A e a Centrais Eltricas S/A (Escelsa) num esquema milionrio de desvio de recursos pblicos. Em 2012, outro conselheiro, Marcos Miranda Madureira, teve o ato de nomeao anulado por deciso judicial por ter cobrado, quando ainda era diretor do Departamento de Estrada e Rodagem (DER-ES), comisso sobre contrato firmado pelo rgo. Madureira estava na Corte de Contas desde 2000 e tambm chegou a presidi-la, no binio 2008/2009.
Atualmente, dentre os sete conselheiros que compem a corte, um deles Valci Jos Ferreira de Souza est afastado do cargo desde 2007 por determinao do STJ por participao no chamado Esquema das Associaes, fraude que desviou R$ 10,6 milhes em recursos pblicos. Outros quatro respondem a ao de improbidade administrativa. No momento do afastamento, Valci estava na presidncia do Tribunal num mandato iniciado em 2001 e que vinha sendo renovado a cada dois anos.
Essa situao resultado da prevalncia da escolha poltica em detrimento da escolha tcnica dos conselheiros. Reflete, nitidamente, os interesses que se quer ver resguardados pelos Poderes intervenientes no processo. Os conselheiros dos Tribunais de Contas so responsveis pela fiscalizao da execuo e aplicao dos recursos pblicos estaduais e municipais, mas por vezes funcionam como fiis garantidores do cumprimento de dvidas eleitorais. Por essa razo, deputados e governador no se intimidam em indicar para o cargo pessoas dispostas a alimentar o fisiologismo custa de recursos compulsoriamente obtidos dos cidados.
Nesse momento, sucumbem quaisquer princpios de ordem moral ou de justia. Nega-se aos participantes do contrato social a justa igualdade de oportunidades, pois que reduzem-se as hipteses de indicao aos apaniguados polticos ou parlamentares -geralmente, em final de carreira. o que se verificou na recente escolha do deputado Srgio Manoel Nader Borges pela Assembleia Legislativa do Estado do Esprito Santo (Ales). Ele foi o vencedor de uma disputa com outros 19 candidatos, vrios deles com invejvel currculo tcnico e sem qualquer mcula de ordem moral. Venceu o poder avassalador do corporativismo, resqucio de um regime autoritrio onde a meritocracia no relevante para o acesso a cargos pblicos.
O escolhido responde a duas aes de improbidade administrativa. Numa delas acusado, juntamente com outros dezoito ento deputados, de participao no mesmo esquema fraudulento Samarco/Escelsa pelo qual j foi condenado, criminalmente, o conselheiro Umberto Messias. O ento deputado e hoje conselheiro recebeu, por meio de conta de laranja, R$ 30 mil como pagamento por seu voto para assegurar a reeleio de Jos Carlos Gratz para a presidncia da Ales, em dezembro de 2000, ameaada pelo envolvimento de seu nome na CPI do Narcotrfico. Noutra ao, Srgio Borges foi condenado pelo Tribunal de Justia do Esprito Santo pelo recebimento indevido de dirias pagas pelo ento presidente Gratz para se manter frente do Legislativo estadual. O novo conselheiro responde ainda a uma ao criminal movida pelo Ministrio Pblico Federal pela prtica dos crimes de corrupo passiva e lavagem de dinheiro, em razo de movimentao irregular de valor advindo da fraudulenta aquisio de crditos de ICMS j referida.
Apesar de todas essas acusaes ressaltando-se a existncia de condenao por rgo colegiado, que o torna inelegvel para concorrer a cargo eletivo (Lei da Ficha Limpa) e at mesmo ocupar cargo pblico no Executivo estadual -, ele foi indicado pela Ales ao cargo de conselheiro. Para a Assembleia Legislativa do Esprito Santo, ele idneo moralmente para julgar as contas dos demais gestores pblicos capixabas. A escolha, selada por alianas polticas partidrias que visam fechar apoios para a campanha eleitoral do ano vindouro, demonstra quo longe est a verdade nem to escondida, mas camuflada por discursos demaggicos, apoiados em suposto resguardo do direito individual e fundamental da presuno de inocncia.
Tudo isso leva a uma constatao ftica sabida, mas difcil de ser admitida. A velha poltica capixaba permanece inalterada; mudou apenas o grupo dominante. Se outrora os cabeas do crime organizado no Estado, frente do Poder Legislativo, subjugavam o Poder Executivo pela fora e chantagem, a partir de sua queda, impulsionada pela ganncia e sensao de impunidade, os papis se inverteram. O Executivo passou a subjugar o Legislativo pela vontade, mediante a diviso dos bnus pelo exerccio do poder, unindo aliados e oposio enfraquecendo, assim, a consolidao do Estado de Direito mediante a transversa mitigao do sistema da tripartio de poderes (Montesquieu, O Esprito das Leis).
O elo entre velho e o novo grupo poltico dominante no Esprito Santo no apenas o deputado Srgio Borges, lder da bancada do PMDB de 2001 a 2011, vice-lder de Governo na Ales at maro de 2012 e, at ser indicado para o TCEES, lder do Governo indicado pelo atual governador. Os interesses de ambos os grupos tambm so os mesmos. Ameaados pela Operao Derrama, que levou cadeia diversos prefeitos, trabalharam pela queda dos seus principais atores primeiramente por meio da exonerao do Secretrio de Segurana Henrique Herkenhoff, cujo trabalho resultou na priso, dentre outros, da ex-prefeita de Itapemirim Norma Ayub, mulher do presidente da Ales, Theodorico Ferrao.
Recentemente, os interesses comuns dos dois grupos voltaram tona com as articulaes que impediram a reconduo de Sebastio Carlos Ranna de Macedo presidncia do TCEES. A questo da escolha de conselheiro dos tribunais de contas h muito deixou de permear apenas o campo jurdico devendo, primeiramente, passar pelo crivo dos critrios da moral e justia. No devemos nos resignar diante da corrupo, sob a alegao de que ela cultural, histrica.
Devemos, pois, reviver o sonho de democracia (El Pas) experimentado nos meados deste ano e exigir das nossas instituies que promovam justia: estamos cansados de viver aprisionados numa caverna e de sermos sombras na parede (Plato, A Repblica) e aprendemos a ver as coisas como elas so. A sociedade exige e o povo brasileiro merece que o Tribunal de Contas seja reinventado, que deixe de ser a chancela das mazelas com o dinheiro pblico.
Para isso urge seja aprovada o proposta de emenda constitucional, apresentada neste ano pelos Deputados da Frente Nacional Mista de Combate Corrupo, que exige ficha limpa e critrios de competncia tcnica para a nomeao de ministros do Tribunal de Contas da Unio (TCU) e conselheiros dos Tribunais de Cconseeontas dos Estados e municpios. Essa a nica forma de eliminar o crculo vicioso e histrico gerado pelo defeito moral de nossos polticos e de elevar o Tribunal de Contas condio de rgo vital do Estado, conforme idealizado por Rui Barbosa h mais de um sculo.

Fonte: Estado